"Por que não apareceu a humanidade perfeita?
Moisés serve-se de uma parábola intuitiva para indigitar a causa desse fenômeno. Essa parábola intuitiva, porém, quando analisada intelectualmente por nós, não nos dá clareza. Quando os exotéricos profanos interpretam a visão esotérica de um iniciado, aparecem muitas obscuridades. Moisés fala simbolicamente do 'sopro de Deus' e da 'voz da serpente' para designar as duas potências que regem todo o homem: o espírito e a inteligência. O homem planejado pelo espírito do sopro de Deus seria um homem perfeito, o Atmam de Buda e da filosofia oriental, o Ish do Talmud judaico.
Mas a voz da inteligência, simbolizada pela serpente, desde o início, barrou a evolução do homem, desviando a evolução espiritual para uma pseudo-evolução intelectual. O sopro de Deus é a 'árvore da vida' - a voz da serpente é a 'árvore do conhecimento do que é bom e do que é mal'.
À primeira vista, parece que a serpente derrotou Deus, que a inteligência derrotou o espírito - e é esta a explicação que os intérpretes profanos e exotéricos dão do Gênesis.
Na realidade, porém, não houve, nem podia haver essa suposta derrota; o espírito de Deus, havendo creado uma criatura de livre-arbítrio, não podia impedir que o homem fosse o senhor do seu destino e se creasse assim como ele queria. O livre-arbítrio, porém, se revela, inicialmente, pela inteligência, eclipsando por muito tempo o espírito - porquanto a evolução principia na periferia e demanda o centro.
Por enquanto, a evolução do homem é meramente intelectual, e não espiritual; a inteligência, em vez de se integrar no espírito, tenta suplantar o espírito. Diz a sabedoria milenar da Bhagavad Gita que 'o ego (inteligência) é o pior inimigo do Eu (espírito), embora o Eu seja o melhor amigo do ego'.
Até hoje, através de séculos e milênios, o ego intelectual (serpente) guerreia o Eu espiritual (Deus). Em consequência dessa prevalência da inteligência negativa sobre o espírito positivo, a humanidade está sujeita a doenças e à morte. Mas, quando o Eu divino integrar em si o ego humano, realizar-se-á o que Moisés vislumbrou num futuro longínquo: O aparecimento do homem perfeito, sem males nem morte. O homem da presente humanidade, dominada ainda pela serpente intelectual, é chamado por Jesus 'filho de mulher' ao passo que o homem da nova humanidade denominado pelo espírito de Deus, é chamado 'Filho do homem', do qual era Jesus o representante antecipado. Possivelmente, Moisés foi também um precursor da nova humanidade, razão porque a teologia judaica o chama Ish (Atmam, Eu), e não Adam (Aham, ego). (...)"
(Huberto Rohden - Porque Sofremos - Ed. Martin Claret, São Paulo, 2004 - p. 23/24)