"A indolência é, de fato, a maldição do homem. Assim como o lavrador irlandês e o cigano cosmopolita vivem na pobreza e na miséria por causa de sua completa ociosidade, do mesmo modo o homem do mundo vive contente pela mesma razão, no meio dos prazeres sensuais. Beber vinhos delicados, comer manjares esquisitos, o amor de cores e de sons brilhantes, de formosas mulheres e de magníficos objetos em seu redor, tudo isto, para o homem cultivado, nem tem mais importância nem é mais satisfatório como motivo final de gozo, do que são as grosserias, diversões e prazeres do moço da lavoura, para o homem não cultivado.
Não pode existir o ponto final, porque a vida em cada uma de suas formas é só uma vasta série de delicadas graduações e o homem que decide permanecer imóvel no ponto de cultura que alcançou e confessa que não pode ir mais longe, faz simplesmente uma arbitrária afirmação para desculpar sua indolência.
Existe, sem dúvida, a possibilidade de declarar que o cigano vive contente no meio da sua pobreza e a sujidade e que, portanto, é tão grande homem como o mais perfeitamente cultivado. Para ele unicamente é assim enquanto permanece na ignorância; no momento em que a luz penetra na obscura inteligência, o homem se volta a ela inteiramente. Assim acontece na mais elevada plataforma, porém a dificuldade de penetrar na mente, de admitir a luz, é muito maior. O lavrador irlandês ama sua aguardente e, enquanto possa tê-la, para nada se preocupar das grandes leis de moralidade e de religião, que se supõe governam e humanidade e induzem os homens a viver com temperança. O gastrônomo culto se ocupa unicamente de sabores sutis e de esquisitos perfumes; porém, estão tão cego com o simples rústico a respeito do fato de que existe algo mais além de semelhantes gratificações. A maneira do lavrador, permanece enganado por um espelhismo que oprime sua alma e imagina que, uma vez obtido um prazer sensual no qual se deleita, pode obter a satisfação suprema, graças a uma interminável repetição, com o que, por fim é presa por demência. O bouquet de vinho que o deleita, penetra em sua alma e a envenena, não lhe deixa outros pensamentos além dos sensuais e se encontra na mesma situação desesperada do homem que morre louco devido a embriaguez. Que benefício obteve o bebedor, da sua demência? Nenhum; a dor devorou, por fim, completamente o prazer e a morte avança para terminar a agonia. O homem sofre o castigo final por sua persistente ignorância de uma lei da natureza, tão inexorável como aquela da gravitação; uma lei que proíbe ao homem permanecer imóvel. Nem sequer duas vezes a mesma taça de prazer se pode saborear; a segunda vez deve conter ou um grão de veneno ou uma gota do elixir da vida.
O mesmo argumento conserva sua força quanto aos prazeres intelectuais; a mesma lei opera. Vemos homens que, quanto à inteligência, são a flor da sua época, que vão muito mais longe que seus irmãos, que a maneira de torres sobressaem entre eles, são arrastados enfim pela roda fatal, girar sobre a mesma, à maneira de manivelas, cedendo à indolência inata da alma e começando a se engar a si mesmos com a quimera da repetição. Então vem a debilidade e a falta de vida, aquele estado infeliz e enganoso no qual, com demasiada frequência, grandes homens entram, justamente quando a metade da sua vida transcorreu. O fogo da juventude, o vigor da inteligência jovem, vence a inércia interna e faz que o homem escale alturas de pensamentos e encha seus pulmões mentais com o ar livre das montanhas. Mas então, afinal, a reação física dele se apodera; o mecanismo físico do cérebro perde seus ímpetos poderosos e começam seus esforços a se debilitarem, simplesmente porque a juventude do corpo tem um fim. Então é o homem assaltado pelo grande tentador da raça, que sempre em vigia permanece junto à escada da vida, pronto a lançar-se sobre aqueles que a tais alturas chegam. Verte a envenenada gota em seu ouvido e desde aquele momento a consciência toda se converte em estupidez e fica o homem aterrorizado, receando que para ele a vida vai perdendo suas possibilidades. Lança-se então atrás, a um campo de experiência familiar e ali encontra alívio tocando a bem conhecida corda da paixão ou emoção. E muitos, por desgraça, tendo feito isto, dilatam assustados ao lançar-se ao desconhecido e se contentam com fazer soar continuamente aquela corda que com mais facilidade responde. Graças a isto, conservam a certeza de que a vida ainda arde no seu interior. Mas, por fim, seu destino é o mesmo do gastrônomo e do bebedor. O poder do feitiço vai sendo menor de dia para dia, à medida que o mecanismo sensitivo vai perdendo sua vitalidade, e pretende o homem ressuscitar o fervor e excitação antigos, fazendo com mais violência soar a nota, abraçando-se mais estreitamente àquilo que lhe faz sentir, esgotando até o fel a taça envenenada. Então está perdido: a loucura se apodera da sua alma, do mesmo modo que faz presa do corpo do borracho. A vida não tem já, para ele, significação alguma e ferozmente se lança nos abismo da demência intelectual. O menos importante dos homens que cometa esta grande loucura, arrasta os espíritos dos demais por uma triste adesão a um familiar pensamento, por um abraço persistente à roda do moinho que afirma ele ser o objetivo final. A nuvem que o rodeia é tão fatal como a própria morte e os homens que uma vez se prostraram a seus pés, se afastam dele pesarosos e têm que olhar atrás, ter presentes suas primitivas palavras se querem recordar sua grandeza."
(Mabel Collins - Pelas Portas de Ouro - Ed. Pensamento, São Paulo - p. 25/27)
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