"Durante sua peregrinação pela matéria, o homem se identifica totalmente com seus corpos - obedecendo inteiramente a seus ditames, com esquecimento de sua verdadeira e divina natureza; ele não sofre, porém se satisfaz à maneira dos animais. O sofrimento principia somente quando a Alma, em seu cárcere terreno, começa a se recordar do Lar divino do qual vive exilada; quando, através do amor, da beleza ou da verdade, se desperta a consciência quanto a sua verdadeira natureza.
Estamos, como Prometeu, acorrentados à rocha da matéria. Mas até que tenhamos consciência do que verdadeiramente somos, não percebemos estar prisioneiros e exilados. Assim viveria quem, exilado de sua pátria ainda nos dias de sua juventude, houvesse permanecido muitos anos entre estrangeiros, recordando com amargura em meio às misérias e privações de seu exílio que houve tempo em que se percebia em ambiente diferente. Mas um dia, talvez, ouça um canto conhecido naquela juventude, e em súbita agonia recorde tudo o que perdeu, reconhecendo em meio à dor que é um exilado, longe de tudo a que tinha apreço. Essas memórias ressuscitam o anelo da terra natal; e esse anseio adquire maior intensidade que nunca. Somente então começam o sofrimento e a luta - sofrimento, por saber o que perdeu; luta, numa tentativa de recuperar aquilo que já possuíra.
De maneira análoga, o despertar da Alma no curso da evolução humana traz não apenas júbilo, mas também sofrimento nesse processo. Enquanto o homem vivia a vida animal de seus corpos, ele conhecia um tipo de contentamento; mas com a recordação de sua verdadeira natureza, com a visão do mundo a que realmente pertence, nasce a milenar luta em que trata de se libertar do enredamento aos mundos da matéria, criado por ele próprio ao identificar-se com seus corpos.
Até esse momento, ele não era consciente de seus corpos como uma limitação. Então, esses se tornaram para ele como a abrasadora túnica de Nesso³, aderindo-se a ele quanto mais ele tenta livrar-se de seu contato. De agora em diante, reconhece-se como duas entidades numa só. É consciente de um Ser interno, superior e divino, que o incita a voltar a seu Lar divino; e de uma natureza animal inferior, que é sua consciência atada aos corpos e por eles dominada."
³ Na Mitologia Grega, Nesso era um centauro que, para vingar-se de Hércules, tenta roubar-lhe a esposa, Dejanira; mas ao ser atingido pela flecha envenenada do próprio Hércules, antes de morrer deixa com Dejanira sua túnica manchada do sangue envenenado, dizendo-lhe que teria dons mágicos para que ela reconquistasse Hércules, se este viesse em qualquer tempo a abandoná-la. Mais tarde, Hércules apaixonou-se pela sedutora Iole, e se dispunha a desposá-la quando recebeu de Dejanira, como presente de núpcias, a túnica ensanguentada. Ao vesti-la, o veneno infiltrou-se-lhe no corpo; louco de dores, ele quis arrancá-la, mas o tecido achava-se de tal forma aderido às suas carnes que estas lhe saíam aos pedaços. Vendo-se perdido, o herói ateou uma fogueira e lançou-se às chamas. (N.E.)
(J.J. Van Der Leeuw - Deuses no Exílio - Ed. Teosófica, Brasília, 2013 - p. 12/13)
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